sexta-feira, 27 de julho de 2018

Um frio muito fino

[ trechos de Adília Lopes, Antologia Poética,
para ler com a voz em Portugal:  


Eu julgava que aquilo era
um Luna Parque
saía-se como se entrava
e não acontecia nada irreversível durante
é o que é um Luna Parque
quando se é adolescente
mas não
quando dei por mim
já lá estava dentro
e não me lembrava
de ter entrado
quando disse agora quero-me 
ir embora
riram-se ah minha rica
deste Luna Parque não se sai
quem cá vem não volta
não se volta atrás
então comecei a pensar
que ia passar o resto dos meus dias
no Luna Parque
acabas por aprender vais ver
a fazer das tripas coração
habituas-te vais ver 
nos primeiros tempos dói
dá vontade de vomitar
depois percebe-se que
no Luna Parque que é
um sítio triste
pode não se ser triste
sai muito caro
mas poder pode-se

*

A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra





tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe

*


escrevia os teus ossos e os teus olhos 
evito escrever 
e vivo como escrevo


*

Por que precipícios e abismos
andou Maria Cristina
para conseguir aquela fotografia? 

*

Pois passara noites e noites a sonhar
que não se conseguia acabar de vestir 
nunca



Ah quem me dera um vestido
que me queimasse

*

Quem me dera uma morte 
como a de Don Juan
ah uma mão que me puxasse
para o escuro

*

Maria Cristina espera
por Guilherme
mesmo quando não tem
nenhum encontro marcado
com ele

*


Podia ser muito feliz
se não fosse muito infeliz


Maria Cristina cansa-se
a contar anedotas
ou a sua vida
a si mesma


Minha querida Cristininha
há horas difíceis
como dizem os cauteleiros
ou os Tampax

*

Afinal não queria matar Guilherme
queria salvá-lo de morrer afogado
dando por ele a vida
numa troca complicada de reféns


Tem frio
um frio muito fino


Chamo-te Maria Cristina
como te chamas, Maria Cristina?


Talvez que tudo se deva
a ter passado o dia
com um sapato de verniz apertado



Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi



Eu no espelho
colada com cola
mais bela
do que dantes
como o prato Zen
que tem as fracturas
sublinhadas
com ouro
obra da fortuna
má e boa
obra da falta de afecto
e do afecto
Narciso e anti-Narciso
viver para crer 



O poema
é mais emblema
que lema
no meu deixo
uma lesma
sempre a mesma
lesma é o meu lema 

*

Por que não deixa de escrever
e passa a dizer Tchau?

*

Mesmo que pudesse 
dizer tudo
não podia dizer tudo
e é bom assim

*

Os dias vão-se 
eu não

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